02º Domingo do Tempo Comum –
Ano B
A liturgia
do 2º Domingo do Tempo Comum propõe-nos uma reflexão sobre a disponibilidade
para acolher os desafios de Deus e para seguir Jesus.
A primeira leitura (1 Sam 3, 3b-10.19) apresenta-nos a história do chamamento de Samuel. O autor desta reflexão deixa claro que o chamamento é sempre uma iniciativa de Deus, o qual vem ao encontro do homem e chama-o pelo nome. Ao homem é pedido que se coloque numa atitude de total disponibilidade para escutar a voz e os desafios de Deus.
Antes de mais, o profeta deve ter plena consciência de que na origem da sua vocação está Deus e que a sua missão só se entende e só se realiza em referência a Deus. Um profeta não se torna profeta para realizar sonhos pessoais, ou porque entende ter as “qualidades profissionais” requeridas para o cargo e faz uma opção profissional pela profecia… O profeta torna-se profeta porque um dia escutou Deus a chamá-lo pelo nome e a confiar-lhe uma missão. Todos nós, chamados por Deus a uma missão no mundo, não podemos esquecer isto: a nossa missão vem de Deus e tem de se desenvolver em referência a Deus; não nos anunciamos a nós próprios, mas anunciamos e testemunhamos Deus e os seus projectos no meio dos nossos irmãos.
Quando
corremos de um lado para o outro, afadigados em mil e uma actividades,
preocupados em realizar com eficiência as tarefas que nos foram confiadas,
dificilmente temos espaço e disponibilidade para ouvir a voz de Deus e para
detectar esses sinais discretos através dos quais Ele nos indica os seus
caminhos. O profeta necessita de tempo e de espaço para rezar, para falar com
Deus, para interrogar o seu coração sobre o sentido do que está a fazer, para
ouvir esse Deus que fala nas “pequenas coisas” a que nem sempre damos
importância.
São muitas as “vozes” que ouvimos
todos os dias, vendendo propostas de vida e de felicidade. Muitas vezes, essas “vozes”
confundem-nos, alienam-nos e conduzem-nos por caminhos onde a felicidade não
está.
Como identificar a voz de Deus no meio das vozes que dia a dia
escutamos e que nos sugerem uma colorida multiplicidade de caminhos e de
propostas? Samuel não identificou a voz de Deus sozinho, mas recorreu à ajuda
do sacerdote Heli… Na verdade, aqueles que partilham connosco a mesma fé e que
percorrem o mesmo caminho podem ajudar-nos a identificar a voz de Deus. A nossa
comunidade cristã, a nossa comunidade religiosa, desafia-nos, interpela-nos,
questiona-nos, ajuda-nos a purificar as nossas opções e a perceber os caminhos
que Deus nos propõe.
Depois de
identificar essa “voz” misteriosa que se lhe dirigia, Samuel respondeu: “fala, Senhor;
o teu servo escuta”. É a expressão de uma total disponibilidade,
abertura e entrega face aos desafios e aos apelos de Deus. É evidente que, na
figura de Samuel, o catequista bíblico propõe a atitude paradigmática que devem
assumir todos aqueles a quem Deus chama. Como é que me situo face aos apelos e
aos desafios de Deus? Com uma obstinada recusa, com um “sim” reticente, ou com
total disponibilidade e entrega?
Na segunda leitura, (1 Cor
6,13c-15a.17-20) Paulo
convida os cristãos de Corinto a viverem de forma coerente com o chamamento que
Deus lhes fez. No crente que vive em comunhão com Cristo deve
manifestar-se sempre a vida nova de Deus. Aplicado ao domínio da vivência da
sexualidade – um dos campos onde as falhas dos cristãos de Corinto eram mais
notórias – isto significa que certas atitudes e hábitos desordenados devem ser
totalmente banidos da vida do cristão.
A questão
essencial que Paulo nos coloca é a seguinte: Deus chama-nos a acolher a vida
nova que Ele nos oferece e a dar testemunho dela em cada instante da nossa
existência. A Palavra de Deus que nos é proposta convida-nos, antes de mais, a
tomar consciência desse chamamento e a aceitar “embarcar” nessa viagem que Deus
nos propõe e que nos conduz ao encontro da verdadeira liberdade e da verdadeira
realização.
Acolher o
chamamento de Deus significa assumir, em todos os momentos e circunstâncias,
comportamentos coerentes com a nossa opção por Cristo e pelo Evangelho. Nada do
que é egoísmo, exploração do outro, abuso dos direitos e dignidade do outro,
procura desordenada do bem próprio à custa do outro, pode fazer parte da vida
do cristão. O cristão é alguém que se comprometeu a ser um sinal vivo de Deus e
a testemunhar diante do mundo – com palavras e com gestos – essa vida de amor,
de serviço, de doação, de entrega que Deus, em Jesus, nos propôs. Membro do
“corpo” de Cristo, o cristão é “corpo” no qual se manifesta a proposta do
próprio Cristo para os homens e mulheres do nosso tempo. Isto obriga-nos a nós,
os crentes, a comportamentos coerentes com o nosso compromisso baptismal.
A propósito,
Paulo coloca o problema da vivência da sexualidade… Essa importante dimensão da
nossa realização como pessoas não pode concretizar-se em acções egoístas, que
nos escravizam a nós e que instrumentalizam os outros; mas tem de
concretizar-se num quadro de amor verdadeiro, de relação, de entrega mútua, de
compromisso, de respeito absoluto pelo outro e pela sua dignidade. Neste campo
surgem, com alguma frequência, denúncias de comportamentos e atitudes, dentro e
fora da Igreja, que afectam e magoam vítimas inocentes do egoísmo dos homens.
Esses factos, se têm de ser enquadrados no contexto da fragilidade que marca a
nossa humanidade, demonstram também a necessidade de uma contínua conversão a
Cristo e aos seus valores. Para o cristão, tudo o que signifique explorar os
irmãos ou desrespeitar a sua dignidade e integridade é um comportamento
proibido.
É
importante, para os crentes, ter consciência de que liberdade não é um valor
absoluto. A liberdade cristã não pode traduzir-se em comportamentos e opções
que subvertam os valores do Evangelho e que neguem a nossa opção fundamental
por Cristo. Uma certa mentalidade actual considera que só nos realizaremos
plenamente se pudermos fazer tudo o que nos apetecer… Contudo, o cristão tem de
ter consciência de que “nem tudo lhe convém”. Aliás, certas opções contrárias
aos valores do Evangelho não conduzem à liberdade, mas à dependência e à
escravidão.
Qual é o
verdadeiro “culto” que Deus pede? Como é que traduzimos, em gestos concretos, a
nossa adesão a Deus? Paulo sugere que o verdadeiro culto, o culto que Deus
espera, é uma vida coerente com os compromissos que assumimos com Ele,
traduzida em gestos concretos de amor, de entrega, de doação, de respeito pelo
outro e pela sua dignidade.
• O Evangelho (Jo 1,35-42) descreve
o encontro de Jesus com os seus primeiros discípulos. Quem é “discípulo” de Jesus?
Quem pode integrar a comunidade de Jesus? Na perspectiva de João, o discípulo é
aquele que é capaz de reconhecer no Cristo que passa o Messias libertador, que
está disponível para seguir Jesus no caminho do amor e da entrega, que aceita o
convite de Jesus para entrar na sua casa e para viver em comunhão com Ele, que
é capaz de testemunhar Jesus e de anunciá-l’O aos outros irmãos.
O que é ser cristão… A identidade cristã não
está na simples pertença jurídica a uma instituição chamada “Igreja”, nem na
recepção de determinados sacramentos, nem na militância em certos movimentos
eclesiais, nem na observância de certas regras de comportamento dito “cristão”…
O cristão é, simplesmente, aquele que acolheu o chamamento de Deus para seguir
Jesus Cristo.
O que é, em
concreto, seguir Jesus? É ver n’Ele o Messias libertador com uma proposta de
vida verdadeira e eterna, aceitar tornar-se seu discípulo, segui-l’O no caminho
do amor, da entrega, da doação da vida, aceitar o desafio de entrar na sua casa
e de viver em comunhão com Ele.
0 nosso
texto sugere também que essa adesão só pode ser radical e absoluta, sem meias
tintas nem hesitações. Os dois primeiros discípulos não discutiram o “ordenado”
que iam ganhar, se a aventura tinha futuro ou se estava condenada ao fracasso,
se o abandono de um mestre para seguir outro representava uma promoção ou uma
despromoção, se o que deixavam para trás era importante ou não era importante;
simplesmente “seguiram Jesus”, sem garantias, sem condições, sem explicações
supérfluas, sem “seguros de vida”, sem se preocuparem em salvaguardar o futuro
se a aventura não desse certo. A aventura da vocação é sempre um salto,
decidido e sereno, para os braços de Deus.
A história
da vocação de André e do outro discípulo (despertos por João Baptista para a
presença do Messias) mostra, ainda, a importância do papel dos irmãos da nossa
comunidade na nossa própria descoberta de Jesus. A comunidade ajuda-nos a tomar
consciência desse Jesus que passa e aponta-nos o caminho do seguimento. Os
desafios de Deus ecoam, tantas vezes, na nossa vida através dos irmãos que nos
rodeiam, das suas indicações, da partilha que eles fazem connosco e que dispõe
o nosso coração para reconhecer Jesus e para O seguir. É na escuta dos nossos
irmãos que encontramos, tantas vezes, as propostas que o próprio Deus nos
apresenta.
O encontro
com Jesus nunca é um caminho fechado, pessoal e sem consequências comunitárias…
Mas é um caminho que tem de me levar ao encontro dos irmãos e que deve
tornar-se, em qualquer tempo e em qualquer circunstância, anúncio e testemunho.
Quem experimenta a vida e a liberdade que Cristo oferece, não pode calar essa
descoberta; mas deve sentir a necessidade de a partilhar com os outros, a fim
de que também eles possam encontrar o verdadeiro sentido para a sua existência.
“Encontrámos o Messias” deve ser o anúncio jubiloso de quem fez uma verdadeira
experiência de vida nova e verdadeira e anseia por levar os irmãos a uma
descoberta semelhante.
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