Tempo Comum - Anos Ímpares - VI Semana - Quarta-feira
20 Fevereiro 2019
Primeira leitura: Génesis 8, 6-13.20-22
O livro do Génesis apresenta-nos dois relatos do dilúvio, tal como apresentara dois relatos da criação. Só que, enquanto estes estão separados um do outro em Gn 1 e Gn 2, os dois relatos do dilúvio estão embutidos um no outro. Mas é possível distingui-los. Enquanto, para um, o dilúvio dura quarenta dias, número aproximativo para um período bastante longo, para outro dura doze meses lunares com mais onze dias, o que perfaz 365 dias, isto é, um ano solar (cf. Gn 7, 11; 8, 13s.). O importante é que o dilúvio, ainda que tendo durado muito, também teve um termo. As águas acabaram por se retirar. Este facto ilumina-nos sobre o modo de agir de Deus.
Outra diferença que notamos entre os dois relatos é que, enquanto num os animais puros reunidos na arca são sete, ou sete pares por espécie, no outro são apenas dois: um macho e uma fêmea. Eram mesmo precisos sete pares de animais? Não chegavam dois por cada espécie? O problema está no sacrifício de animais e pássaros com que termina o relato. Tal não seria possível se só houvesse um par por cada espécie... Ao sentir o odor deste sacrifício, Deus reconcilia-se com a criação e promete jamais voltar a amaldiçoar a terra por causa do homem. Esta imagem de Deus pode fazer-nos sorrir. Mas é menos primitiva que a do relato paralelo da Mesopotâmia, onde os deuses, ao sentirem o odor do sacrifício, se aproximam como um enxame de moscas.
Depois do dilúvio, e do sacrifício, Deus decide não voltar a amaldiçoar a terra por causa do homem, «pois as tendências do coração humano são más, desde a juventude» (v. 21). A maldade do coração humano esteve na origem do dilúvio, e está no seu termo. Deus apercebe-se de que o remédio tentado não foi eficaz, e desiste de voltar a usá-lo. Assim verificamos que, em Deus, castigo e misericórdia quase se identificam. Nascem da mesma motivação.
Evangelho: Marcos 8, 22-26
A cura do cego de Betsaida, propositadamente colocada por Marcos num contexto onde se fala da cegueira dos fariseus e dos discípulos, encerra a «secção dos pães».
Jesus, mais uma vez, usa a linguagem táctil, não à maneira dos magos, mas para que a pessoa, que recebe o prodígio, esteja consciente do que se passa. O milagre realiza-se em dois tempos: primeiro o cego vê confusamente: «Vejo os homens; vejo-os como árvores a andar» (v. 24); depois, quando a cura está completa, vê claramente: «ficou restabelecido e distinguia tudo com nitidez» (v. 25).
Jesus não quer atitudes triunfalistas. Por isso, ao despedir o cego curado, recomenda-lhe que não entre na aldeia (v. 26). O verdadeiro crente crê nos milagres, e não por causa dos milagres. Os milagres vêm depois da fé, de tal modo que, se não há fé, ou se ela é fraca, nem sequer acontecem milagres. Além disso, os milagres nunca são enquadrados numa cristologia ou eclesiologia triunfalista. São testemunhos da vinda do Messias que hão-de ser contados de modo discreto por aqueles que os receberam. De qualquer modo, Marcos insiste na «reserva messiânica».
Os crentes não têm que medir forças com os não-crentes. Por um lado, podem perfeitamente admitir que muitos «prodígios» foram efeitos de simples forças naturais desconhecidas pela razão humana; por outro lado, estão conscientes de que a sua fé não vem dos milagres, mas que os milagres a pressupõem. Mas também têm todo o direito a pressupor que certos acontecimentos são verdadeiros «prodígios», pois crêem na força «sobrenatural» de Deus, embora não a possam demonstrar racionalmente.
O dilúvio termina gradualmente, à medida que as águas vão secando. Noé procura conhecer a situação da terra, soltando repetidas vezes uma pomba. Quando ela volta trazendo no bico um raminho de oliveira, compreende, e nós também compreendemos, que a misericórdia prevaleceu sobre o juízo, e que a terra é de novo habitável. A pomba, com o ramo de oliveira no bico, torna-se um símbolo de paz.
Causa-nos espanto a simplicidade com que Deus muda a sua decisão: «De futuro, não amaldiçoarei mais a terra... e não voltarei a castigar os seres vivos, como fiz» (v. 21). Noutro passo da Escrituras diz-se que Deus nunca se arrepende, que não é um homem, para mudar de opinião. Os filósofos insistem nesta imutabilidade de Deus: sendo perfeição absoluta, Deus não pode mudar. Esta contradição não deriva das limitações de Deus, mas das nossas. Não somos capazes de compreender a Deus. Se o compreendermos, deixará de ser Deus, como diz Santo Agostinho. Precisamos até de juntar coisas contraditoras para fazermos uma ideia menos imperfeita de Deus. Insistir na imutabilidade de Deus, como os filósofos, leva-nos a uma ideia m ais empobrecida de Deus, que seria, para nós, semelhante a um monte de pedras, que não se move, não tem sentimentos, não vive.
Se lermos com simplicidade a Bíblia, vemos que Deus pensa, tem sentimentos, ama profundamente, ira-se com os pecados do povo, muda as suas decisões... E ficamos com a ideia de um ser vivo, cheio de movimento e de riqueza, o que é mais verdadeiro do que a ideia dos filósofos. A Bíblia, por vezes, também fala de Deus como imutável. Mas geralmente mostra-nos um Deus semelhante a nós. A perfeição divina é plenitude e não imobilidade. A imobilidade de Deus encerra todos os movimentos. Deus não tem emoções humanas, mas está acima delas. Não ama como nós, mas ama mais do que nós. Ama de um modo que não podemos compreender.
A humanidade de Jesus revela-nos plenamente o modo de ser e de reagir de Deus. Revela-nos o Coração de Jesus. Jesus, verdadeiro homem, sofreu, amou, reflectiu, fez projectos de vida, foi enganado e traído. Actuou com a simplicidade e a humildade que nos mostra o evangelho de hoje, na cura do cego de Betsaida. Jesus leva-o para fora da cidade, põe-lhe saliva nos olhos, impõe-lhe as mãos e pergunta-lhe: «Vês alguma coisa?» (v. 23). Parece que o milagre ficou a meio, pois o homem afirma: «Vejo os homens; vejo-os como árvores a andar» (v. 24). Então, impõe-lhe as mãos e o milagre completa-se. O cego «distinguia tudo com nitidez» (v. 25).
O modo humilde e progressivo como Jesus cura o cego de Betsaida ensina-nos que, na vida espiritual, precisamos de muita paciência. Não podemos estar à espera de resultados imediatos. A nossa compreensão da misericórdia divina avança ao ritmo da nossa cura, que Ele mesmo realiza, com muita paciência.
Fonte: Adaptação resumo de um texto de F. Fonseca em "dehonianos.org/portal/liturgia.
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